Produzindo Quadrinhos na Lógica da Cultura Livre

Há 18 anos venho tentando produzir e publicar histórias em quadrinhos dentro de uma lógica que foge completamente da que foi estabelecida pelo mercado convencional de quadrinhos, e que num certo sentido essa lógica pode até mesmo ser considerada anticapitalista.

Se tem uma ideologia que carrego comigo e que acredito quase que piamente é a da cultura livre. Acredito que toda produção cultural (seja uma obra acadêmica ou artística) deve ser de acesso livre (tarifa zero) a todos.

A forma que encontrei para dar acesso livre as minhas obras foi disponibilizando-as gratuitamente na Internet sob licenças abertas como a Creative Commons, que permite que qualquer um possa copiar, compartilhar e redistribuir minhas obras em qualquer suporte ou formato, assim como transformar, remixar e criar outras obras a partir das minhas, mesmo que para uso comercial, desde que seja dado o crédito apropriado aos autores, que seja indicado a fonte das obras, e que qualquer obra derivada seja distribuída sob a mesma licença (dessa forma promovendo um ciclo virtuoso de cultura livre).

Mas existe um pequeno problema nesse modelo. Ainda que a obra seja de acesso livre e distribuída gratuitamente, a sua produção, no entanto, tem um custo (tanto material, quanto laboral e energético). Na minha sociedade ideal esses custos da produção cultural seriam pagos pelo conjunto da sociedade (que, relembrando, usufruiria dessa produção livremente) através do Estado e suas instituições culturais. Mas infelizmente não vivemos (ainda) nessa sociedade.

Como então custear uma produção cultural num modelo anticapitalista mas vivendo numa sociedade capitalista? Eu não sei. Ainda.

O que desde o começo venho tentando para custear a produção das minhas obras é imprimindo-as em formato de revistas ou livros e vendendo-as na forma de produtos. Bem, nada de novo aqui. Esse é o modelo padrão usado pelo mercado de quadrinhos desde que editoras como a Marvel e a DC (ainda não com esses nomes) começaram a produzir as primeiras revistas em quadrinhos no EUA no começo do século passado.

Por experiência própria posso dizer que o fato de meus quadrinhos estarem disponibilizados gratuitamente na Internet e em formato digital nunca me impediu de conseguir vendê-los em formato impresso. Creio que até mesmo ajudou a vender.

Mas o problema deste modelo padrão é que o custo da produção fica atrelado ao custo do produto, no caso, a revista ou o livro impresso. E esse atrelamento leva alguns leitores a avaliarem o valor pago pelas histórias em quadrinhos simplesmente por parâmetros materiais do produto impresso, como número de páginas, tipo de papel, acabamento da capa, etc. E qualquer quadrinista sabe que o custo material é o menor custo da produção, os maiores são os custos laboral e energético, que deixa de ser levado em conta pelo leitor em seu atrelamento das histórias em quadrinhos ao produto material em si (e que é reforçado pela cultura do colecionismo).

Outro problema é que eu não mais gostaria de ter que vender quadrinhos como um produto (ainda mais impresso). Todo o processo de vender o produto quadrinhos é muito trabalhoso, ainda mais para um quadrinista independente como eu que não conta com uma estrutura de vendas das grandes corporações como a Disney/Marvel.

Devido ao reumatismo, ficar me locomovendo até os eventos e feiras não é também muito fácil, ainda que eu já esteja andando melhor do que alguns anos atrás. Eu queria poder apenas produzir quadrinhos (e que todo mundo pudesse ler meus quadrinhos gratuitamente). Cada tempo que eu perco vendendo quadrinhos é tempo a menos produzindo quadrinhos. E tempo se tornou algo escasso pra mim. A cada dor reumática que sinto percebo claramente meu tempo se esgotando. Não dá mais pra desperdiçá-lo pois tem ainda mais algumas histórias que preciso contar antes de dizer adeus.

Mas não dá pra produzir quadrinhos se os custos de produção (sobretudo o laboral e energético) não forem pagos. Como então pagar os custos de produção de uma história em quadrinhos sem precisar vendê-la como produto? Eu não sei. Ainda.

O que recentemente comecei a testar para resolver esse problema é o modelo de financiamento coletivo recorrente. Mas diferente de muitos quadrinistas que também adotaram esse modelo, não pretendo dar aos apoiadores recompensas materiais, nem conteúdo exclusivo, muito menos acesso vip ou qualquer coisa do tipo. “Mas se você não pretende fazer nada disso, como vai convencer as pessoas a apoiarem?” Pois bem, eis o grande desafio.

A minha ideia é justamente tentar convencer os apoiadores de que eles não estão comprando um produto, nem assinando um serviço. Ou seja, desassociar o custo de financiamento da produção de uma história em quadrinhos com sendo o valor de um produto/serviço. O que eles receberão como “recompensa” pelo apoio é justamente a produção das histórias em quadrinhos que estão ajudando a financiar. E uma vez que os custos de produção estão pagos (material, laboral, energético), não só eles que ajudaram a bancar esses custos poderão ler as histórias, mas todo mundo. Sim, eu sei que não existe almoço grátis. Mas uma vez que o almoço foi pago e produzido, porque não compartilhar com os outros? Ainda mais quando esse almoço pode ser copiado e reproduzido infinitamente sem a perda ou o esgotamento de cada cópia.

Convencer as pessoas disso, no entanto, não tem sido lá muito fácil. Toda vez que falo desse modelo pra alguém, sinto que a pessoa me olha como se eu fosse maluco e estivesse delirando. No entanto, acho que nunca estive tão lúcido. E acredite em mim, é preciso de muita lucidez para manter a mente funcionando diante da dor reumática que nunca dá trégua, e não sucumbir a dopá-la com o arsenal de drogas que possuo (todas elas adquiridas legalmente, já deixo claro).

Mas apesar da árdua tarefa, acho que está valendo a pena tentar. É um esforço de formiguinha mesmo, pois é um trabalho de convencer cada pessoa para que abra mão de seus preceitos já cristalizados de como funciona o mercado de quadrinhos, e tentar adotar essa nova lógica de financiamento, produção e apreciação de obras culturais. Uma lógica no qual é preciso abandonar os preceitos individualistas no qual a nossa sociedade é moldada, que valoriza mais o ter do que o ser, e adotar valores amparados pela coletividade, pelo compartilhamento e pela colaboração. E se eu não conseguir, ao menos terá sido uma boa forma de ocupar a mente e não deixá-la ser inebriada pela dor.

Em tempo, já estou com uma campanha no Catarse Assinaturas para financiar a produção das minhas histórias em quadrinhos.

Ilustração de Cadu Simões rodeado por algum de seus personagens.
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Por Cadu Simões

Alguém em busca da questão fundamental sobre a vida, o universo e tudo mais.